Por Anna Graziella Neiva
Domingo, 08 de janeiro de 2023, os brasileiros foram tomados de assalto ao presenciarem em tempo real os episódios dantescos e insólitos, que foram únicos na história do nosso país.
É preciso destacar que nunca houve tamanho arroubo antidemocrático perpetrado de maneira organizada, sistematizada e simultânea contra a sede dos Três Poderes da República Federativa do Brasil: Executivo, Legislativo e Judiciário.
A selvageria dos atos praticados causou extensa depredação do patrimônio público, destruição de obras de arte de valor inestimável, destroçou símbolos relevantes da construção da mais longeva estabilidade democrática já conquistada até aqui. O vilipêndio não ficou limitado às avarias em bens materiais. O objetivo primeiro dos atos extremistas foi agredir a democracia brasileira e os princípios republicanos que sustentam a nação.
Absolutamente nada justifica as atrocidades cometidas, sobretudo, pelo terror infligido à sociedade, pelo desprezo à cúpula dos Poderes da República e pelo simbolismo destas instituições para o regime democrático. Divergências e diferenças não autorizam, sob nenhum viés, transgressão de direitos e deveres afiançados pela Constituição Brasileira.
Deve-se cravar, de arranque, uma clara premissa: os fatos ocorridos no Estado brasileiro, no dia 08 de janeiro, não possuem qualquer relação com os direitos gerais de liberdade, mencionados no preâmbulo e assegurados no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Há muito, infratores se valem de pilares da estrutura democrática de nosso Estado, a exemplo das liberdades de manifestação, expressão, opinião, reunião e imprensa para delinquir, macular, esgarçar, erodir e exterminar o regime democrático de direito.
A delicadeza do enfrentamento do tema está justamente no envolvimento das liberdades – e suas diversas nuances – por serem pressupostos de uma sociedade democrática e, nesse enredo, trazer-se à cena indispensável ingrediente, qual seja, a “tolerância” que sinaliza, dentro do contexto democrático, o dever de disposição em ouvir, respeitar, conviver e coexistir com opiniões díspares.
Nos últimos tempos, face a fricção entre direitos fundamentais e o persistente tensionamento entre as funções e esferas de Poder, ganhou força e holofote nos debates acadêmicos o paradoxo da tolerância, do filósofo austro-britânico Karl Popper, considerado um dos maiores teóricos da ciência do século XX.
Encravado nesta conjuntura, cujo pano de fundo era a intolerância, em que “opiniões” incitavam o ódio, a segregação, a violência, o renomado filósofo é conduzido a se questionar: deve-se ser tolerante com os intolerantes? Em evidente réplica aos movimentos totalitários da época, Karl Popper, então, escreve o livro “A Sociedade Aberta e seus Inimigos” (originalmente publicado no ano de 1945) e cunha a ideia do “paradoxo da tolerância” para responder a citada quaestio concluindo que não, não se deve ser tolerante com a intolerância.
Explana Popper que, para ser genuinamente tolerante, a sociedade deve ser intolerante à intolerância. Apesar de paradoxal, há uma singeleza genial na construção filosófica: se há a tolerância ilimitada, grupos que propagam pensamentos intolerantes acabam pervertendo o debate público a um ponto em que ameaçam a democracia e a liberdade de expressão de outros grupos. Finaliza o raciocínio com uma verdade irruptível: a tolerância ilimitada conduz à extinção da própria tolerância.
Na toada do filósofo austro-britânico a sociedade deve “reservar o direito de não tolerar os intolerantes”. Qualquer movimento que pregue a perseguição, o ódio, a intolerância e a violência deve ser chancelado como absolutamente ilegal.
Nenhuma hermenêutica jurídica, por mais enviesada que seja, oferece guarida a quem quer que tenha participado – ativa ou passivamente – da barbárie dos atos do dia 08.01.23.
É da essência democrática a convivência respeitosa e pacífica das dissonâncias de ideias e de ideais. A diversidade é a tônica de uma sociedade plural, diversa, republicana, livre e democrática.
Como advogada é impossível manter-me silente. Afinal, antes de receber a Carteira de Identidade da Advocacia, presta-se um compromisso oficial e ético, diante do Conselho Seccional onde se requer a inscrição, em virtude de comando previsto no artigo 20, do Regulamento Geral que assim dispõe: “Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas.”
Sem o cumprimento deste ato administrativo formal, oral, complexo, ad solemnitatem e personalíssimo, jamais um bacharel se torna advogada ou advogado.
Desde o ocorrido, uma avalanche de questões jurídicas aflora a todo instante. Elas vão desde os reflexos criminais daqueles que participaram de maneira ativa, aos que tinham o dever legal de agir em decorrência do exercício de funções públicas e se mantiveram omissos, perpassando por um debate que deverá se manter perene: a necessidade de criação de estruturas governamentais que tenham por missão a defesa do estado democrático de direito.
Com relação aos aspectos penais, os tipos cabíveis parecem ser múltiplos e poder-se-ia pensar, a princípio, nos crimes de (i) furto qualificado (artigo 155 do Código Penal); (ii) destruir, inutilizar ou deteriorar coisa pública (artigo 163, do Código Penal); (iii) dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico (artigo 165, do Código Penal); (iv) incitação ao crime (artigo 286, do Código Penal); (v) associação criminosa (artigo 288 do Código Penal); (vi) abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L, do Código Penal); (vii) golpe de estado (artigo 359-M, do Código Penal); (viii) crime de sabotagem (artigo 359-R, do Código Penal), tipos instituídos na legislação por meio da Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que revogou a Lei de Segurança Nacional, e trata de delitos que atentam contra o Estado democrático de Direito em seu sentido mais amplo; dentre outros.
A recentíssima inclusão, no Código Penal, de tipos que tenham como objetivo a proteção do Estado Democrático de Direito ratifica que esta é uma preocupação que já pairava na atmosfera brasileira se coduando, portanto, às recentes medidas tomadas pelo Ministro da Advocacia Geral da União, Jorge Messias que, tão logo nomeado, anunciou a criação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia. Anteontem, dia 10 de janeiro, o Conselho Nacional do Ministério Público embalado na mesma sintonia cria – por meio de resolução – a Comissão Temporária de Defesa do Estado Democrático de Direito[2].
Neste quadrante é de se enfatizar que a Alemanha possui uma Agência de Proteção à Constituição que é tida como um mecanismo de alerta precoce da democracia. Seria o que, acertadamente, os alemães denominam de um instrumento de “democracia defensiva”. A função precípua da agência é zelar pelo regime democrático alemão, proteger seus princípios, localizar a identificar indivíduos e organizações antidemocráticos e mantê-los sob vigilância.
Considerando (i) a queda das democracias pelo mundo (no intervalo temporal de 2011 a 2022 trinta e cinco países deixaram de ser democráticos); (ii) os recentes dados publicados pelo instituto sueco V-Dem[3] de que 7 (sete) em cada 10 (dez) pessoas (5,7 bilhões) vivem sob regimes políticos considerados não plenamente democráticos; (iii) países com regimes democráticos e os com regimes autoritários quase que se equivalem (89 ante a 90[4]); (iv) que antes de uma ruptura ditatorial as democracias tendem a sofrer com as progressivas erosões e ascensão de regimes de extrema direita; a criação, consolidação e amadurecimento de organismos de governo que apresentem como missão zelar, estudar, debater, disseminar, aprofundar conhecimento e, também, identificar, mapear e agir, nos limites da lei, contra indivíduos e organizações que preguem contra o regime democrático brasileiro aparentam ser medidas urgentes, necessárias e saudáveis para que se efetive um proceso de oxigenação e assepsia da democracia brasileira
É de fundamental importância que as normas mudem para que também transmudem a face da nossa sociedade. Afinal, já dizia Martin Luther King: “nós não somos o que gostaríamos de ser. Nós não somos o que ainda iremos ser. Mas, graças a Deus, Não somos mais quem nós éramos”.
Anna Graziella Neiva – Advogada, juíza do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão e Ouvidora do TRE/MA, sócia-advogada do escritório Anna Graziella Neiva Advocacia, Pós-Graduada em Direito Eleitoral, MBA em Direito Tributário, Especialista em Ciência Jurídico-Política e Direito Constitucional e Eleitoral, Membro Consultora da Comissão Especial de Eleitoral do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, membro da ABRADEP, do COPEJE e do IAB.