O Quilombo resiste

Carlos Lula, Secretário de Saúde do Estado

Por Carlos Lula

Em porões de navios e condições subumanas. Assim chegaram os primeiros negros no Brasil, seres humanos forçados a deixarem suas terras, escravizados e tratados com crueldade por aqueles que sequer os consideravam humanos: eram contabilizados como mercadorias nos registros dos comércios, ao lado dos quilos de farinha e dos animais. Mas para além dos livros de história, dos quadros e dos registros fotográficos, é preciso lembrar que três séculos de escravidão deixaram marcas profundas na sociedade brasileira, especialmente no que se diz respeito à deficiência de políticas públicas voltadas para a população negra.

É que apesar da abolição oficial da escravatura, persiste no Brasil um racismo silencioso e não declarado, que, sob o discurso do convívio harmônico entre etnias no país, tem como legado, segundo dados do Ministério da Saúde, a maior precocidade dos óbitos da população negra, as altas taxas de mortalidade materna e infantil, a maior prevalência de doenças crônicas e infecciosas, bem como os altos índices de violência urbana que incidem em maior intensidade sobre essa parcela da população.

Na língua Banto, “kilombo” significa povoação ou fortaleza. Em Angola, era o local no qual os guerreiros passavam por rituais de iniciação para o combate e a magia. Assim, os quilombos, a princípio identificados como comunidades autônomas de escravos fugitivos no Brasil, converteram-se em importante opção de organização social da população negra e espaço de resgate de sua humanidade. Converteram-se de um espaço de fuga da opressão para um espaço de construção de outra história.

É nesse sentido que os quilombos resistem. Os últimos dados do Programa Brasil Quilombola indicam que quase 75% das famílias quilombolas brasileiras ainda vivem em situação de extrema pobreza. A causa desse alto índice seria a falta de acesso aos serviços básicos, como saneamento e energia elétrica. Em outro contexto, portanto, e décadas após o fim da escravidão, é preciso continuar resistindo para se tentar dissipar esse legado.

No Maranhão – onde 80% da população é considerada negra, segundo o IBGE – estamos dando largos passos para garantir o acesso da população negra aos serviços públicos, e aqui queremos dar destaque à área da saúde. No último dia 27 de novembro, o governador Flávio Dino assinou o decreto nº. 33.361, que implementa a Política Estadual de Saúde Integral da População Negra e das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Quilombola do Maranhão, um avanço legal na promoção da equidade.

Nas diretrizes e objetivos da política, estão incluídas ações de prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde da população negra, observando as suas peculiaridades, bem como gestão participativa e controle social. Desde a sua construção, através da realização de escutas territoriais sobre saúde da população negra nas 19 Unidades Regionais de Saúde – com a participação de lideranças do movimento negro, quilombolas, gestores e técnicos da saúde – a política lançou um olhar sobre a saúde.

Mais do que isso, a política reconhece que existem peculiaridades que precisam ser observadas. Afinal, além dos costumes, culturas e ambientes, existem fatores genéticos que interferem nas condições de saúde do público negro. Entre as doenças mais comuns na população afrodescendente estão anemia falciforme, doenças cardiovasculares e hipertensão arterial, aneurisma da aorta, câncer de próstata, diabetes e glaucoma. As estratégias de saúde precisam levar isso em consideração, sob o risco de, não só ignorar as principais necessidades, como de desperdiçar recursos com ações desnecessárias e pouco eficazes.

O combate às desigualdades sociais de qualquer cunho não aceita meias palavras. Por isso, nossos esforços para a implementação da Política Estadual de Saúde Integral da População Negra e das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Quilombola do Maranhão. É preciso ser efetivo e urgente nas estratégias de recuperação da dignidade humana. A promoção do acesso da população aos serviços e ações de saúde com equidade e, principalmente, qualidade, é uma prioridade da Secretaria de Estado da Saúde.

Substituímos a escravidão de homens por uma mensagem falsa aperfeiçoada ao longo dos anos, que garante direitos iguais a todos os cidadãos – sobretudo em relação a saúde. Se por um tempo a nossa arrogante humildade levou-nos a acreditar neste discurso, por outro lado potencializou a ocorrência de problemas de saúde na população negra. Isto é, as desvantagens materiais e simbólicas historicamente sofridas pelos negros e a escassez de ações efetivas para o seu enfrentamento podem prorrogar as disparidades nas condições de vida e saúde indefinidamente. Não basta, portanto, reconhecer o grito do quilombo, o que faz o Decreto, mas adotar uma postura de encarar nossos problemas históricos e entender que ainda há um longo caminho para superar as condições de vulnerabilidades e iniquidades a que está submetida a população negra. É esse o nosso objetivo.

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